Macunaíma, de Mário de Andrade: A Rapsódia Modernista Brasileira
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Poucas obras ressoam de maneira tão profunda no imaginário brasileiro quanto Macunaíma, de Mário de Andrade . Publicado em 1928, o romance é frequentemente apontado como um dos pilares do modernismo no Brasil, uma verdadeira rapsódia que amalgama mitologia indígena, folclore nacional e uma crítica social mordaz ao país de seu tempo — aspectos que o tornam, até hoje, objeto de fascínio e estudo nas salas de aula, rodas de leitura e pesquisas acadêmicas.
Neste post, convido você, leitor, a revisitar essa obra revolucionária, analisando seus principais elementos e refletindo sobre sua relevância e atualidade no cenário literário brasileiro.
O Contexto do Modernismo e a Gênese de Macunaíma
Macunaíma nasce em um momento efervescente da cultura brasileira. O modernismo, inaugurado oficialmente com a Semana de Arte Moderna de 1922, buscava romper com os modelos estéticos europeus, propondo uma arte autenticamente nacional, que dialogasse com as raízes do país e suas múltiplas identidades. Mário de Andrade, figura central desse movimento, foi um dos que mais profundamente se dedicaram a essa busca.
A gênese do romance está intimamente ligada às viagens de Mário pelo interior do Brasil, sobretudo à sua expedição pelo Norte e Nordeste em 1927. Ao deparar-se com a riqueza e diversidade das manifestações culturais brasileiras — lendas, músicas, costumes, línguas —, o autor percebeu que o Brasil era muito mais do que a cultura erudita dos grandes centros urbanos. Era, sobretudo, mestiço, plural e contraditório.
A Estrutura da Rapsódia: Mistura de Gêneros e Linguagens
O subtítulo do livro, “O herói sem nenhum caráter”, já antecipa a proposta do autor: uma paródia dos épicos tradicionais, nos quais o herói é dotado de virtudes e valores universais. Em vez disso, Macunaíma é um anti-herói, cuja personalidade é fluida, contraditória e mutável — reflexo do próprio Brasil.
O termo “rapsódia” é fundamental para entender a estrutura do romance. Assim como nas rapsódias gregas, Macunaíma é composto por episódios fragmentados, que se costuram em torno das aventuras do protagonista. A narrativa se vale de múltiplos registros linguísticos, alternando entre o português culto e expressões regionais, línguas indígenas, neologismos e até estrangeirismos. Essa mistura não é mero capricho estilístico, mas sim uma afirmação do caráter híbrido e polifônico da cultura brasileira.
Folclore, Mitologia e Identidade Nacional
Um dos grandes méritos de Mário de Andrade é a maneira como ele incorpora elementos do folclore e da mitologia indígena ao romance, sem, contudo, folclorizar ou idealizar o “Brasil profundo”. Macunaíma nasce em plena floresta amazônica, filho do medo da noite, e suas aventuras atravessam o território nacional, do Norte ao Sudeste, em busca de sua “muiraquitã” — um amuleto mágico que simboliza, entre outras coisas, o desejo de plenitude e identidade.
Ao longo da narrativa, o protagonista encontra seres fantásticos, como o gigante Piaimã e a deusa Ci, a Mãe do Mato. Esses personagens são extraídos de lendas indígenas, mas são reinventados pelo olhar modernista, que mistura o sagrado e o profano, o trágico e o cômico. A mitologia, aqui, não é apenas pano de fundo, mas estrutura fundamental do romance, que propõe uma verdadeira “brasilidade mítica”.
Crítica Social: O Brasil em Xeque
Ao mesmo tempo em que celebra a riqueza da cultura popular, Macunaíma é um texto profundamente crítico. O herói, que “não tinha nenhum caráter”, é também uma metáfora do Brasil, país de contradições, eternamente em busca de uma identidade que nunca se completa. A trajetória do protagonista é marcada pelo individualismo, pela preguiça, pela esperteza — traços que, para Mário de Andrade, eram sintomas de uma sociedade marcada pela desigualdade, pela exploração e pela falta de projetos coletivos.
A chegada de Macunaíma a São Paulo, por exemplo, é carregada de ironia. A cidade, símbolo do progresso e da modernidade, surge como um espaço hostil, onde o herói se depara com o capitalismo voraz, a opressão do trabalho e a perda das referências míticas. O contraste entre o mundo mágico da floresta e a selva de pedra urbana explicita as tensões entre tradição e modernidade, centro e periferia, autenticidade e alienação.
Atualidade e Relevância de Macunaíma
Quase cem anos após sua publicação, Macunaíma permanece atual, tanto pela ousadia formal quanto pela acuidade de sua crítica. Em tempos de debates acalorados sobre identidade nacional, multiculturalismo e pós-colonialismo, o romance de Mário de Andrade nos lembra que o Brasil é, antes de tudo, um país em fluxo, cujas fronteiras culturais estão em permanente negociação.
Ler Macunaíma hoje é um convite à reflexão sobre quem somos, de onde viemos e para onde queremos ir. É também um exercício de escuta das vozes múltiplas que compõem o tecido de nossa literatura — vozes indígenas, africanas, europeias, populares, urbanas e rurais. Em um mundo marcado pela padronização e pelo consumismo, a rapsódia de Mário de Andrade resiste como um manifesto pela diferença, pela criatividade e pela reinvenção constante.
Se você ainda não leu Macunaíma, ou se já leu e deseja revisitar suas páginas, faça-o com o coração aberto às surpresas e ambiguidades que o livro reserva. Afinal, como diz o próprio herói: “Ai, que preguiça!” — mas também, que maravilha de literatura podemos encontrar quando nos dispomos a mergulhar em nossas próprias contradições.